Sobre o filme Sherlock Holmes (e as traduções)

Não dá pra falar neste filme sem dizer o óbvio, de saída: é um filme.

A assertiva acima é fundamental para que se desfrute do novo filme do diretor Guy Ritchie. Simplesmente porque, como já disse Sherlock Holmes em Um estudo em vermelho: –“É um erro capital teorizar antes de ter todas as evidências. Isso distorce o raciocínio”; a importância da assertiva, entrementes, se deve ao fato de que muita gente que tem acesso a essa ululante informação consegue fazer a boa e velha reclamação de que o filme não é fiel à obra do criador Conan Doyle.

Pois que seja, filme e papel são meios muito diferentes e têm, cada, sua própria linguagem. Não bastasse a diferença entre meios, Sherlock e Watson são personagens contemporâneos de uma  Inglaterra Vitoriana que agora só existe em monumentos, livros, memórias.

Pra começo de conversa, confirmo o que foi visto no trailer (Santos e Marelovaldo, meus amigos, reclamaram): o filme tem muita ação. O resmungo dos amigos é explicado pela literatura: o universo de Holmes e Watson nunca foi de ação, as relações entre os personagens e o ambiente eram pensadas; vez por outra correrias aconteciam nas estórias, resultantes das urgências de algum caso, mas… pancadaria? Opa, não. Neste universo criado por Conan Doyle, de frio racionalismo – porque ele também criou o aquele de O mundo perdido –, não há necessidade de muita luta, a ação toda acontece entre os fatos narrados por Watson e as deduções de Sherlock.

Os protagonistas são quase os mesmos imortais criados por Doyle. Quase, porque foram repaginados. A amizade entre os dois certamente tem outro tom – e nem pretendo discutir sexualidade –, porque demonstram um companheirismo não muito típico dos fleumáticos ingleses. As suas relações com o mundo também parecem bem diferentes: Holmes, principalmente, é um valentão bom de briga; sua apresentação logo no começo do filme revela os traços do diretor Ritchie, numa seqüência de ação de movimentos lentos, em que o processo de deduções de Holmes é revelado, num observar e pensar que requer – pra ele, Sherlock – sempre poucos segundos (um pouco disso é exposto por Conan Doyle em A ciência da dedução, cap. 2 de Um estudo em vermelho).

A Inglaterra Vitoriana proposta por Ritchie beira o steampunk. O diretor simplesmente não sente necessidade de se ater a uma realidade, seja ela a de Conan Doyle, seja ela a dos livros de história. Em uma obra cuja principal função é entreter, não vejo porque seguir uma ou outra linha deva ser necessário. O público contemporâneo não tem mais o mesmo estômago pra certas fidelidades. É, Syd Field já andou por aí a dizer: –“Casablanca, não sendo um remake, talvez nunca tivesse o ritmo do filme original se fosse desenvolvido nos dias de hoje.”

Não acho que ele, Syd, esteja errado. É fácil rodar um remake igual a um filme original, cena após cena, e ter grande aceitação do público. Afinal, o remake já tem a seu favor o fato de (muito provavelmente) ter por base um filme clássico. A pergunta que me fizeram, entretanto, soa digna: será que não poderiam ter mudado os nomes dos personagens? Era mesmo necessário pegar carona na literatura de Conan Doyle?

Ora, é um filme. E como tal, liberdades foram tomadas – liberdades um tanto diferentes daquelas que vez por outra assolam a todos que lêem traduções (mas, ainda assim, liberdades); minha curiosidade é: como serão os filmes baseados em Sherlock Holmes daqui a 100 anos? Como será realizada essa nova tradução? Será ela mais ligada a um tempo ou aos textos de outrora?

Holmes, House, Batman. Nomes, variações, essências, traduções

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One Response to “Sobre o filme Sherlock Holmes (e as traduções)”
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  1. […] talvez – tema que tentei desenvolver, acidentalmente, quando escrevi sobre o filme Sherlock Holmes, dirigido por Guy […]



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